PERFIL DO ORIXÁOxumarê é um Orixá bastante cultuado no Brasil, apesar de existirem muitas confusões a respeito dele, principalmente nos sincretismos e nos cultos mais afastados do Candomblé tradicional africano como a Umbanda. A confusão começa a partir do próprio nome, já que parte dele também é igual ao nome do Orixá feminino Oxum, a senhora da água doce. Algumas correntes da Umbanda, inclusive, costumam dizer que Oxumarê é uma das diferentes formas e tipos de Oxum, mas no Candomblé tradicional tal associação é absolutamente rejeitada. São divindades distintas, inclusive quanto aos cultos e à origem. Em relação a Oxumarê, qualquer definição mais rígida é difícil e arriscada. Não se pode nem dizer que seja um Orixá masculino ou feminino, pois ele é as duas coisas ao mesmo tempo; metade do ano é macho, a outra metade é fêmea. Por isso mesmo a dualidade é o conceito básico associado a seus mitos e a seu arquétipo. Essa dualidade onipresente faz com que Oxumarê carregue todos os opostos e todos os antônimos básicos dentro de si: bem e mal, dia e noite, macho e fêmea, doce e amargo, etc. Nos seis meses em que é uma divindade masculina, é representado pelo arco-íris que, segundo algumas lendas é a ponte que possibilita que as águas de Oxum sejam levadas ao castelo no céu de Xangô. Por essa lenda, é atribuído a Oxumarê o poder de regular as chuvas e as secas, já que, enquanto o arco-íris brilha, não pode chover. Ao mesmo tempo, a própria existência do arco-íris é a prova de que a água está sendo levada para os céus em forma de vapor, onde então se aglutinará em forma de nuvem, passará por nova transformação química recuperando o estado líquido e voltará à terra sob essa forma, recomeçando tudo de novo: a evaporação da água, novas nuvens, novas chuvas, etc. Nos seis meses subseqüentes, o Orixá assume forma feminina e se aproxima de todos os opostos do que representou no semestre anterior. É então, uma cobra, obrigado a se arrastar agilmente tanto na terra como na água, deixando as alturas para viver sempre junto ao chão, perdendo em transcendência e ganhando em materialismo. Sob essa forma, segundo alguns mitos, Oxumarê encarna sua figura mais negativa, provocando tudo que é mau e perigoso. Uma interpretação antropológica mais cuidadosa, porém, pode questionar a validade dessas lendas. Não podemos nos esquecer de que tanto na África, como especialmente no Brasil, a população negra, que trazia consigo todos esses mitos, foi continuamente assediada pela colonização branca. Uma das formas mais utilizadas por jesuítas para convencer os negros, era a repressão física, mas para alguns, não bastava o medo de apanhar. Eles queriam a crença verdadeira e, para isso, tentaram explicar e codificar a religião do Orixás segundo pontos de vista cristãos, adaptando divindades, introduzindo a noção de que os Orixás, seriam santos como os da Igreja Católica, etc. Essa busca objetiva do sincretismo sem dúvida foi esbarrar em Oxumarê e na cobra - e não há animal mais peçonhento, perigoso e pecador do que ela na mitologia católica (recordar os mitos de Adão e Eva, a maçã, a concepção de pecado original, etc.). Por isso, não seria difícil para um jesuíta que acreditasse sinceramente nos símbolos de sua visão teológica. Reconhecer na cobra mais um sinal da presença dos símbolos católicos na religião do Orixás e nele reconhecer uma figura que só poderia trazer o mal. Essa, pelo menos, é uma das interpretações feitas por pesquisadores que compararam diferentes versões dos mesmos mitos que não encontraram uma divisão absoluta entre bem / arco-íris (ou masculino) e mal / cobra (ou feminino). Na verdade, o que se pode abstrair de contradições como as que apresenta Oxumarê é que este é o Orixá do movimento, da ação, da eterna transformação, do contínuo oscilar entre um caminho e outro que norteia a vida humana. É o Orixá da tese e da antítese. Por isso, seu domínio se estende a todos os movimentos regulares, que não podem parar, como a alternância entre chuva e bom tempo, dia e noite, positivo e negativo. Conta-se sobre ele que, como cobra, pode ser bastante agressivo e violento, o que o leva a morder a própria cauda. Isso gera um movimento moto-contínuo pois, enquanto não largar o próprio rabo, não parará de girar, sem controle. Esse movimento representa a rotação da Terra, seu translado em torno do Sol, sempre repetitivo- todos os movimentos dos planetas e astros do universo, regulados pela força da gravidade e por princípios que fazem esses processos parecerem imutáveis, eternos, ou pelo menos muito duradouros se comparados com o tempo de vida médio da criatura humana sobre a terra, não só em termos de espécie, mas principalmente em termos da existência de uma só pessoa. Se essa ação terminasse de repente, o universo como o entendemos deixaria de existir, sendo substituído imediatamente pelo caos. Esse mesmo conceito justifica um preceito tradicional do Candomblé que diz que é necessário alimentar e cuidar de Oxumarê muito bem pois, se ele perder suas forças e morrer, a conseqüência será nada menos que o fim da vida no mundo. Enquanto o arco-íris traz a boa notícia do fim da tempestade, da volta do sol, da possibilidade de movimentação livre e confortável, a cobra é particularmente perigosa para uma civilização das selvas, já que ela está em seu hábitat característico, podendo realizar rápidas incertas. Outra fonte de indefinição a respeito do Orixá vem das contradições existentes em suas lendas no Brasil e na própria África. Oxumarê é uma divindade originária da cultura do Daomé, região centro-norte da África. Há séculos tal civilização foi dominada pelos iorubas, povo mais primitivo no sentido de organização social e visão religiosa, mas, em compensação, mais poderoso em termos de organização militar. Como aconteceu com Roma e Grécia, a dominação de uma sociedade menos rica em produções culturais ou no terreno da superestrutura em geral fizeram com que os mitos dos daomeanos não fossem apenas reprimidos, pelo contrário, os iorubas não tentaram impor sua cultura ao povo dominado. Ficaram na verdade impressionados com sua cosmologia e tentaram assimilá-la, principalmente nas figuras que não fossem formas semelhantes a divindades que também possuíssem. Oxumarê foi um desses casos. O princípio da dualidade dos iorubas fazia parte dos Orixás-crianças (Ibeji) - A dualidade que eles representam, porém, é mais próxima do comportamento contraditório e irresponsável em termos ético das crianças, ainda não reprimidas pela codificação social. Já a dualidade de Oxumarê é mais abrangente e até mesmo metafísica, pois representa os ciclos que não estão ao alcance do ser humano. Oxumarê, Iroco, Omolu, Obaluaê e Nanã, os Orixás do Daomé mais conhecidos e cultuados, castigam quando dispostos ou provocados, mas raramente se arrependem e não possuem as falhas humanas, visíveis e humanizadas das figura do panteão ioruba.
CARACTERÍSTICAS DOS FILHOS DE OXUMARÊComo é comum a todas as divindades originárias do Daomé (cultura jeje) é relativamente difícil estabelecer um arquétipo específico de comportamento associado ao Orixá, já que ele é misterioso e cheio de sombras e mitos. Os filhos de Oxumarê são bem mais difíceis de serem reconhecidos dos os guerreiros filhos de Iansã, os calmos e sábios filhos de Oxalá e os maternais e familiares filhos de Iemanjá, por exemplo. Mesmo assim, algumas características básicas podem ser listadas. Há, porém, divergências em relação às suas características ao consultarmos autores diferente. Para o renomado pesquisador Pierre Verger, por exemplo, Oxumarê pode ser associado à riqueza: Oxumarê é o arquétipo das pessoas que desejam ser ricas; das pessoas pacientes e perseverantes nos seus empreendimentos e que não medem sacrifícios para atingir seus objetivos. Já Monique Augras, segundo sua visão a respeito dos filhos de Oxumarê, eles costumam possuir o dom da vidência. Quando vivia na terra, Oxumarê previa tudo, adivinhava o que ia acontecer, a tal ponto que não era mais possível viver. Os deuses então decidiram mantê-lo afastado dos homens, pois a clarividência total acaba transformando-se em maldição. A Seu pedido, Oxumarê obteve a autorização de descer na terra de três em três anos. Verger acrescenta que Oxumarê está associado ao misterioso, a tudo que implica o conceito de determinação além dos poderes dos homens, do destino, enfim: É o senhor de tudo o que é alongado. O cordão umbilical, que está sob seu controle, é enterrado geralmente com a placenta, sob uma palmeira que se torna propriedade do recém-nascido, cuja saúde dependerá da boa conservação dessa árvore. Assim, ao arquétipo de comportamento associado à figura desse Orixá complexo está a tendência à renovação, a compulsividade à mudança. Seus filhos estão entre aquelas pessoas que, de tempos em tempos, mudam tudo em sua vida: mudam de casa, de amigos, de emprego, como se ciclos se sucedessem sempre, obrigatoriamente, exigindo e provocando rompimento com o passado e iniciando diuturnamente a busca de um novo equilíbrio que deverá persistir até num novo momento de ruptura, desintegração e substituição. Mutabilidade, reinício é seu princípio básico, aproximando-o dos mitos ocidentais referentes ao planeta Plutão, o astro da morte, da destruição, da revolução como forma de renascimento e ressurreição. Também são apontados nos filhos de Oxumarê certos traços de orgulho e de ostentação, algo que os aproxima do clichê do novo-rico, exibicionista, quando surge um grave problema para alguém de sua amizade, e que precisa efetivamente da sua ajuda. A androginia do Orixá, por vezes é estendida a seus filhos. Estes, segundo algumas correntes, seriam bissexuais em potencial, mas essa interpretação não é aceita universalmente. Fisicamente, os filhos de Oxumarê tendem a se movimentar extremamente leve, pouco levantando os pés do chão. Têm em comum com a cobra a facilidade em serem silenciosos, armarem seus botes na vida sem que as pessoas em torno se apercebam disso e só atacando seus inimigos quando têm plena certeza da vitória, que a vítima está encurralada num território que não é o seu